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História

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Foto do site (Opovonews), Confraternização em nome da negritude

A Comunidade Remanescente Quilombola de Volta Miúda, no município de Caravelas, está localizado em região compreendida pela escravagista Colônia Leopoldina (Séc. XIX). Desde sua criação foi desenhado um panorama dos “colonos” da Leopoldina, homens e famílias que, vindos para o Brasil como parte de um projeto para incentivar a mão de obra livre, terminaram por se tornar proprietários de escravos. Por esta razão, o estatuto de colônia foi, inclusive, contestado diversas vezes na época. Restou, no entanto, a característica de uma comunidade formada, basicamente, por proprietários de terra e de escravos estrangeiros e seus descendentes brasileiros. Restou também o nome do projeto original, pois essa comunidade escravista continuaria a ser chamada de Colônia Leopoldina.

Uma família que investiu alto em propriedades na colônia foram os irmãos Krull. Parentes do cônsul Pedro Peik de Hamburgo, Ernesto e Frederico Krull  construíram um patrimônio considerável e formaram uma numerosa família. Em 1840 reuniam o maior número de escravos entre todos os produtores, 103 no total, o que prova que talvez fossem os proprietários com um maior capital a sua disposição para investir em escravos. Os negócios prosperavam para os Krull. Em 1847 a família tinha 15 membros e já reunia 125 escravos na fazenda Leopoldina, que somada às terras compradas das propriedades vizinhas contavam 1.500 braças (3.300m) de largura por 3000 (6.600m) de comprimento. No início da década de 1850 compraram parte da fazenda Sapucaieira que era de Luiz Maulaz. Um total de 250 braças (550m) de largura por 1500 (3.300m) de comprimento, com 53 mil pés de café plantados em 1854. Ainda constava no inventário de Ernesto Krull, em nome da Sociedade Krull, os seguintes bens: um sobrado grande novo em que mora o sócio Francisco Krull; uma casa térrea grande em que mora a viúva Johanna Frederika Krull; o engenho novo de serrar madeiras, de despolpar e descascar café, de fazer farinha de mandioca com tudo, casa e aterro do tanque. 10 plataformas com 40 mil tijolos juntas ás casas de gavetas 76; uma casa no porto desta fazenda feita para um moinho coberta de taboinhas e assoalhada de imbuia, e mais quatro roças que somadas tinham plantados 221 mil pés de café. No mesmo inventário consta ainda uma dívida de quinze contos de réis a Pedro Peick. Essa dívida esclarece a questão quanto aos Krull serem apenas administradores dos bens do cônsul de Hamburgo. A princípio poderiam até administrar a propriedade do tio, mas com empréstimos tomados a ele obtiveram e fizeram prosperar algumas propriedades na colônia, ao ponto de, na década de 1850, haverem formado uma das maiores empresas da região.

Muitos anos se passaram, hoje Volta Miúda um quilombo livre, enfrenta um processo de sufocamento decorrente da prática do monocultivo do eucalipto, capitaneado por multinacionais. A ação deletéria das empresas se dá com a invasão das propriedades quilombolas, pulverização de agrotóxicos herbicidas/pesticidas por via aérea, à captação ilegal de água e contaminação e seca de córregos e nascentes. É possível identificar pelo menos três aspectos marcantes na desterritorialização da comunidade quilombola: marginalização da população a direitos sociais, descaracterização da cultura e modo de vida, expropriação da terra por via direta e indireta. Um processo violento que visa a anulação da existência e cultura de uma comunidade fundada sob valores que diferem dos princípios moderno-capitalistas.

Atualmente tem a população estimada em 22.740 pessoas, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ano de referência 2018. Além de Volta Miúda, o município possui outras duas comunidades reconhecidas como remanescentes quilombolas pela Fundação Cultural Palmares, denominadas Naiá e Mutum. De acordo com o censo demográfico datado de 2010, a população era assim composta, de acordo com o critério cor/raça: amarela (225), branca (3589), indígena (42), parda (13622), preta (3936). Sendo que quase metade da população residia na zona rural (10.105), num total de 21.414 pessoas em 2010. A afrodescendência é aspecto marcante no município, os pretos estão em maioridade numérica em relação aos brancos, enquanto os pardos representam mais da metade da população. Contudo, grande é a pressão do capital latifundiário para apagar a cultura afro. José Maurício Arruti, em Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola (2008), ao levantar os significados atribuídos ao termo “quilombo”, assevera que a “categoria ‘remanescente de quilombos’ é um exemplo privilegiado de como o poder simbólico de nomeação depositado no Estado pode, ao menos em parte, criar as próprias coisas nomeadas” (2008, p. 121). Para ir além dos estigmas, os sujeitos remanescentes quilombolas de Volta Miúda, lutam para preservar os traços culturais afrodescendentes que os conformam, assim como os marcos temporais que são, para eles, significativos para a compreensão da história da comunidade. Na miudeza ignorada, mundos de sentimentos afloram em olhares, tons e ritmos sonoros, na apreensão da vida que não possui fim em si mesma, mas que se realiza coletivamente. Na Volta Miúda memorada não há espaço para o individualismo. As narrativas sempre evocam um sentido coletivo das experiências e, mesmo quando nos verbos de ação o “eu” predomina, o sujeito não existe no mundo para si ou dissociado da sua responsabilidade para com os fazeres da comunidade – sejam eles religiosos, culturais ou quotidianos, numa ética afroperspectiva que reflete “Uma maneira de viver, uma possibilidade de existir junto com outras pessoas de forma não egoísta, uma existência comunitária antirracista e policêntrica” (NOGUERA, 2012, p. 147). Para Fábio Leocádio, presidente da Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente Quilombola de Volta Miúda, o avanço da monocultura do eucalipto tem sido determinante para o apagamento da comunidade. O alijamento às oportunidades de trabalho, do acesso ao transporte, e controle das “ações sociais” locais pelas empresas, imprimem o controle sobre a permanência, em especial dos mais jovens, na localidade, ao passo em que diretamente atuam na invasão das terras dos quilombolas com o avanço da silvicultura. Ao falar sobre a sua origem, brada com emoção: “Eu sou literalmente nascido e criado dentro de Volta Miúda, não nasci em um hospital, eu nasci naquela comunidade. Comunidade Remanescente Quilombola de Volta Miúda, Caravelas, Bahia”. Sob a pressão do capital latifundiário e do silenciamento do Estado para a defesa dos direitos dos quilombolas, Fábio reflete a mitigação da autonomia e estima da comunidade para resistência. “Nós nos sentíamos pequenos, até que começamos a descobrir que nós temos direitos”, afirma o presidente da associação quilombola ao explicar que o conhecimento e apropriação dos mecanismos legais para reclamo de direitos serviu ao reconhecimento do caráter histórico-cultural da comunidade e resguardo de algumas garantias estabelecidas pelas políticas públicas afirmativas. “Começamos a buscar informação sobre o que era ser quilombolas. (...) Em 2005, nós demos entrada na demarcação, em 2013 recebemos a certidão de auto reconhecimento”, conta Fábio e, segundo ele, a partir desse momento a comunidade passou “a criar resistência, a entender que aqui não seria lugar de forasteiros, seria sim da comunidade e dos antigos que viveram ali e que estão lá até hoje”. Nos dizeres de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos, as memórias forjadas no âmbito do cativeiro, ou partir dele, têm o condão de recuperar a historicidade dos diferentes processos de desestruturação da ordem escravista e de “desnaturalizar a noção de raça, percebendo as categorias e identidades raciais como construções sociais historicamente determinadas”, (2005, p. 29). Carlos Vogt e Peter Fry (1996, p. 25) criticam a tergiversação sobre o fenômeno da “resistência cultural”, alegando que a resistência dos traços culturais afrodescendentes “não é um processo simples que se dá no confronto entre duas culturas imutáveis no tempo”, pois, ao conceber a resistência como “sintoma de certa pujança metafísica das culturas africanas”, pretere-se a consciência quanto aos enfrentamentos entre grupos, categorias e indivíduos, “para quem a cultura orienta a ação política e é ao mesmo tempo uma arma usada para empreende-la”

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